Fui apresentado a João Antônio, recentemente, nas aulas do professor Antonio Hohlfeldt. O recém-conhecido autor do texto abaixo foi jornalista e escritor - e entre imprensa e literatura e o emaranhado que esses dois podem fazer para confundir os adeptos da rotulagem se fez -, nasceu em 1937, morreu em 1996 e produziu suas melhores obras nas décadas de 60 e 70. Um dos representantes brasileiros do New Journalism, João Antônio foi grandão no jornalismo, mas dizem que era bom mesmo é na sinuca. Vale a pena aí abaixo.
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"CORPO A CORPO COM A VIDA
João Antônio
A maioria dos depoimentos que tenho lido me parecem testemunhos de uma época em que quase todos estão preocupados com o acessório, o complementar, o supérfluo, ficando esquecidos o fundamental, o essencial. Assim, grande parte dos escritores que depõem hoje sustenta preocupação vinculada à forma, sob a denominação de um “ismo” qualquer. Lamentável ou incrível. As posições beletristas não mudaram entre nós, sequer um milímetro, nos últimos quinze anos.
Mas é de uma simplicidade alarmante. O distanciamento absurdo do escritor de certas faixas da sida deste país só se explica pela sua colocação absurda perante a própria vida. Nossa severa obediência às modas e aos “ismos”, a gula pelo texto brilhoso, pelos efeitos de estilo, pelo salamaleque e flosô espiritual, ainda vai muito acesa. Tudo isso se denuncia como o resultado de uma cultura precariamente importada e pior ainda absorvida, aproveitada, adaptada. Como na vida, o escritor brasileiro vai tendo um comportamento típico da classe média – gasta mais do que consome, consome mais do que assimila, assimila menos do que necessita. Finalmente, um comportamento predatório em todos os sentidos.
O de que carecemos, em essência, é o levantamento de realidades brasileiras, vistas de dentro para fora. Necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da terra. O que é diferente de publicar livros, e muito. Daí saltarem dois flagrantes vergonhosos – o nosso distanciamento de uma literatura que reflita a vida brasileira, o futebol, a umbanda, a vida operária e fabril, o êxodo rural, a habitação, a saúde, a vida policial, aquela faixa toda a que talvez se possa chamar radiografias brasileiras. E é devido a tal carência que, de um lado, não temos conteúdo, e de outro, nem temos forma brasileira. Pois que, a forma, resulta de uma posição intelectualizada e fornece uma falsa estética, importada, empostada, mal adquirida, sujeita a todas as ondas e sempre mal digerida.
Tudo isso não deveria. Afinal, a literatura brasileira que ficou ave uma seiva, antes de qualquer outra qualidade. Um compromisso com a coisa brasileira sem retoques, imposturas e embelecos mentais. A que ficou e que pode servir de exemplo foi sempre produzida por uma atitude de caráter, de análise crítica e crítica realista, de novas propostas, de atitudes modificadoras e renovadoras, de denúncia, revelação e participação. Os escritores que ficaram, entre nós, firmaram um compromisso sério com o fato social, com o povo e a terra – Lima Barreto, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Oswald de Andrade, Manuel Antonio de Almeida lá atrás.
Compreenderam uma verdade fundamental e descobriram a chave. Não é possível produzir uma literatura de heróis taludos ou de grandiosidade imponente, nem horizontal, nem vertical, na vida de um país cujo homem está, por exemplo, comendo rapadura e mandioca em beira de estradas e esperando carona em algum pau-de-arara para o Sul, já que deve e precisa sobreviver. Logo, tais grandezas quiquiriquis, salve-salves e loas apologéticas tropeçam nas próprias pernas. E têm pernas curtas como a mentira.
Há uma boa tendência (Antônio Torres, Ignácio de Loyola, Wander Piroli, Oswaldo França Júnior e outros, poucos outros) na qual o universal cabe dentro do particular, e se procura descobrir, surpreender, flagrar, compreender a nossa vida brasileira com suas contradições e sofrimentos, imprevisões, improvisações, malemolências e descaídas, jogo de cintura ou perna entrevada. Enfim, luso-afro-tupiniquim e deslumbrada, paupérrima e metida a sofisticada, molambenta ou faminta e querendo tomar importâncias altas e ares civilizados.
Seria muito necessária a humildade e a dignidade de olhar à nossa volta e compreender, enxergar finalmente que somos já um povo. Encarar, respeitar, conhecer isso e erguer uma literatura à sombra disso, de, sobre e para esses fatos. Direi que sempre, por favor, a hora é de reler (ou ler pela primeira vez...) os escritores que brigaram e se consumiram nessa briga, homens que não aceitaram a literatura como um pó de vaidade, um ilustre, involuntário, cósmico bem divino e inútil. Que desemboca numa produção para a indiferença e o escárnio dos leitores. Assim, a literatura não pode ser apenas mola para se ganhar prêmios, empregos, facilitações imediatas e lances pragmáticos. Sendo um compromisso de caráter com a vida, o povo e a terra, ela já teve, entre nós uma frente de luta, questionamento, discussão, apelo, denúncia, busca de uma verdade brasileira. Oswald, Lima, Graciliano, José Lins do Rego, Manuel Antônio de Almeida se recusaram a produzir para a gloriazinha, a vaidade e o riso inconseqüente de uma sociedade.
Os formalismos e modas em geral não têm nada a ver com o recado visceral de uma literatura realmente brasileira. E mais. Desde Cervantes, Dostoievsky, Stendhal, Balazac, Zola, o universal sempre coube no particular pela captação e exposição da luta do homem e não de suas piruetas, cambalhotas, firulas e filigranas mentais. Que me desculpem os “ismos”, mas no caso brasileiro, eles não passam de preguiça, equívoco e desvio da verdadeira atenção. E função.
Precisamos de uma literatura? Precisamos. Mas de uma arte literária, como de um teatro, de um cinema, de um jornalismo que firam, penetrem, compreendam, exponham, descarnem as nossas áreas de vida. Não será o futebol o nosso maior traço de cultura, o mais nacional e o mais internacional; tão importante quanto o couro brasileiro ou o café of Brazil? A umbanda não será a nossa mais eloqüente religião, tropical e desconcertante, luso-agro-tupiniquim por excelência, maldita e ingênua, malemolente e terrível, que gosta de sangue e gosta de flores? A desconhecida vida de nossas favelas, local onde mais se canta e onde mais existe um espírito comunitário; a inédita vida industrial; os nossos subúrbios escondendo quase sempre setenta e cinco por cento de nossas populações urbanas; os nossos interiores – os nossos intestinos, enfim, onde estão em nossa literatura? Em seus lugares não estarão colocados os realismos fantásticos, as semiologias translúcidas, os hipermodelismos pansexuais, os supra-realismos hermenêuticos, os lambuzados estruturalismos processuais? Enquanto isso, os aspectos da vida brasileira estão aí, inéditos, não tocados, deixados pra lá, adiados eternamente e aguardando os comunicadores, artistas e intérpretes.
O caminho é claro e, também por isso, difícil – sem grandes mistérios e escolas. Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma literatura que se rale nos fatos e não que rele neles. Nisso, a sua principal missão – ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma.
Já o como fazer essa literatura me parece implicar, enquanto se pretenda retratar o mundo que nos cerca, na necessidade do invento ou desdobramento de uma nova ótica, nova postura diante dos acontecimentos. Trocando em miúdos: um sujeito pensante não poderia mais, pelo menos conscientemente, ver, sentir e retransmitir um crime do Esquadrão da Morte, por exemplo, pela óptica costumeira ou por alguma das óticas tradicionais. Mas sim, tentaria no fundo enxergar e transmitir um problema velho, visto com olhos novos. Novos, mais sérios, mais atraídos, sensíveis, fecundos, rasgados, num corpo-a-corpo com a vida. Jamais como um observador não participante do espetáculo.
Digamos, um bandido falando de bandidos. Corpo-a-corpo com a vida, posse e gozo juntos, juntinhos, chupão, safanão, gemido. A verdade é que muito de repente, surge um novo – ou vários novos – gênero na literatura americana. Como alguém definiria hoje A Sangue Frio? Romance? Reportagem? Como alguém definiria Truman Capote? Mas Truman Capote talvez seja pouco. Como definir, por exemplo, Norman Mailer? É o mesmo indivíduo-tipo-espécie artística o homem que escreveu O Sonho Americano, que descreveu a convenção de Chicago, que contou a história de um tiro na lua?
Quem diz literatura americana, tem de observar que o aspecto também é italiano ou alemão. E, nessas nacionalidades, jornalismo e literatura andam se misturando na proporção do despropósito. Ou do despropósito completo, se quiserem. Não me negue ninguém que uma matéria sobre o bebê proveta, por exemplo, feita pelo Der Spiegel não seja mm misto de ensaio cientifico, com jornalismo e certa dose ficcional. Quem fala em bebê proveta, fala também da morte, etc. Não é possível omitir a contribuição de Vasco Pratolini, há mais de dez anos, fazendo conto-reportagem para as revistas italianas. Nem é preciso falar no Hemingway jornalista. Parece-me que algumas obras de Horace McCoy, vamos dizer Mas Não se Mata Cavalo? e, vamos dizer, principalmente, sua obra em decorrência de sua vida – em cinco anos, na costa da Califórnia, teve estas ocupações: juiz de concursos de dança, pugilista substituto, colhedor de frutas, garçom, guarda-costas de um chefe político.
Será que esses desdobramentos, essas indefinições apriorísticas, não traduzem, finalmente, a necessidade de se travar um corpo-a-corpo com a realidade, como única maneira de descrever – ou mesmo sublimar, ou mesmo recriar, ou, enfim, criar – qualquer coisa que seja realidade? Por que, subitamente, o mesmo Norman Mailer que conta como matou a mulher e como fugiu da policia em O Sonho Americano é o mesmo Norman Mailer (indivíduo) que esfaqueou a mulher, que se marginalizou, que tapeou a opinião pública, de tanto se encher o saco com as tapeações impingidas pelos manipuladores da opinião pública? Esse cara não é um gangster infiltração no gangsterismo do estabelecimento? Desafiando-o e vendendo-lhe?
Corpo-a-corpo com a vida. Um bandido falando de bandidos.
Estrepem-se os Umberto Ecco da obra aberta. Mas admita-se, finalmente, que existe, ao menos, obra atual, a obra de hoje ou, muito mais precisamente, a obra-hoje: aquilo que se faz que é livro ou, simplesmente, que dá assunto. Será que, de uma hora pra outra, os indivíduos não se estarão debatendo não mais para contar o assento mas para fazer ou fazer-se assunto? E não será essa a única opção não-repetitiva, não-coagida pelo chamado estabelecimento?
Ainda uma vez, ainda um desdobramento: não estará faltando – como falta e, como às vezes, aparece – em todas as épocas críticas o repórter-marginal (melhormente para sua sobrevivência, o repórter-gangster), o romancista-bandido, o sambista ainda mais?
Não será absolutamente necessário, para compreender – uma palavra superada; leia-se, por favor, enfrentar – o marginalismo individual dos que se debatem no futebol ou na policia, alguém que assuma o mesmo gangsterismo, um semelhante (mas com visão crítica) individualismo? Um gangsterismo, um individualismo, um individualismo ao menos experimental. Que, ao escrever, dê a mesma porrada, como repórter, escritor, etc., que o bandido, o jogador, o traficante, o bicheiro e, especialmente e isso tudo – herói – dão para sobreviver. Assim, uma literatura de murro e porrada. Um corpo-a-corpo com a vida.
Entenda-se herói, no sentido grego, de homem que marca o momento de sua morte, qualidade igualmente fundamental do bandido aqui em questão.
Daí, subitamente, até como citação e até como epígrafe, o novo gênero (ou seu plural) só trataria o futebol, o jogador, o repórter, o esporte, a policia, a habitação, a saúde, o bordel, tal qual ele o é. Assim: de bandido para bandido.
A verdade é que esse tipo de produção escrita, de aparência apenas experimental, já chegou a produto acabados e comestíveis; são bons e podem ser consumidos imediatamente pelo leitor de nossos dias. Exemplos? A Sangue Frio (Truman Capote), Um Tiro na Lua (Norman Mailer), Miami e o Cerco de Chicago (Mailer).
De Mailer: “Os escritores profissionais não se enraivecem, eles se vingam”.
Bem. Aqui estou eu com a máquina, com a minha catimba, com a minha afetada má-vontade. Do lado de lá, estão Pelé, Almir, Garrincha, Paulo César, Rivelino, Zagalo com o tipo de máquina deles: o chute e mais a catimba e a má-vontade. Não será experimentalmente, um grande tratamento, uma grande briga? Por exemplo, o escritor versus o personagem. O escritor versus a literatura. O escritor versus o herói. E os dois descarnando-se e enfrentando-se. Nada de compreendendo-se. A briga, o enfarruscamento, o embucetamento, o conflito, o corpo-a-corpo durará até ver quem sobra, o que sobra de cada lado.
Digamos, do escritor experimentalmente gangster, bandido, do jogador obrigadamente gangster, bandido.
Do ponto de vista da forma essa nova linha de idéias favorece e até obriga o surgimento de um novo processo. Desaparece a forma apriorística, que passa a ser determinada pelo próprio tema. O escritor não pode partir com uma forma pronta. Ela será dada, exigida, imposta pelo próprio tema e com esse elemento de certa novidade, é possível admitir também que cada novo tema tratado jamais deixará de surpreender o escritor. O tema passa a flagrar o desconhecimento do escritor, uma vez que o intérprete aceita um corpo-a-corpo a ser travado com a coisa a ser interpretada.
Uma vez que a proposta revoluciona o conceito de gênero, também fere e desfalca (ou enriquece) o conceito de forma.
Um professor de teoria literária e literatura comparada, Antônio Cândido de Mello e Souza, já denunciou que “as formas tradicionais da literatura foram postas em dúvida desde o Modernismo, e talvez as formas novas ainda não tenham alcançado uma plenitude equivalente à delas”. E, mais adiante: “Esta crise nos gêneros favorece no escritor o gosto de uma liberdade desejada mas incômoda, pois, não havendo a escora dos gêneros literários fixos, torna-se necessário descobrir até certo ponto o próprio enquadramento. O movimento de 22 instaurou a liberdade na criação literária e originou algo que só agora estamos sentindo plenamente: o escritor está entregue à própria liberdade. Daí, não apenas a possibilidade, mas a necessidade da experimentação”.
Felizmente foi Antônio Cândido quem escreveu essas palavras e não eu. Um mestre me poupou trabalho, livrando-me a cara. Sempre direi que, apesar dos tropeções, sou um sujeito de sorte.
Já li várias vezes e, até em livro, que Malagueta, Perus e Bacanaço é considerado um clássico da literatura, um “clássico velhaco”, como a ele se referia em vida Marques Rebelo. Depois de mais de dez anos de seu lançamento, os contos do livro ficam de pé. Ainda. Traduzidos, freqüentando antologias, flertados pelo cinema e pela tevê. E mais a coisarada folclórica toda que hoje em meu nome corre.
Bem. O elemento que mais me leva a acreditar em Malagueta, Perus e Bacanaço como coisa viva se arruma exatamente no fato de que vi meus jogadores de sinuca, viradores, vadios, vagabundos, merdunchos do ponto de vista deles mesmos. E não do escritor.
No meu caso particular, até por questões de vida, não poderia enfrentá-los sob nenhuma outra ótica. Eu vivi a aventura de Malagueta, Perus e Bacanaço um pote de vezes. Um tufo de vezes, um derrame, uma profusão de vezes. Sair da Lapa, cair a Barra Funda, desguiar para o centro da cidade, pegar os lados de Pinheiros, procurando jogo e acabar na Lapa, era a aventura diária de quem estava naquele fogo. Literalmente, me é desagradável analisar os contos. Afinal, sou o autor. E eles que fiquem de pé sozinhos. Posso dizer, no entanto, que a qualidade mais firme daquele meu livro é o ponto de vista. É o enfoque vendo do lado dos bandidos, dos merdunchos. Não do escritor. Aliás, falando claro e sem alarde, o escritor até que atrapalhou, enquanto elemento de ótica. De um jeito ou de outro, o líquido e certo é que Malagueta, Perus e Bacanaço é, talvez, mais sinuca que literatura.
Chego a um novo livro, Malhação do Judas Carioca e me vejo, de certa forma, inda mais mudado.
Literatura, de dentro para fora. Isso é pouco. Realismo crítico. É pouco. Romance-reportagem-depoimento. Ainda pouco. Pode ser tudo isso trançado, misturado, dosado, conluiado, argamassado uma coisa da outra. E será bom. Perto da mosca. A mosca – é quase certo – está no corpo-a-corpo com a vida.
Escrever é sangrar. Sempre, desde a Bíblia. Se não sangra, é escrever?
Em tempo. Esquecer as épocas, as modas, as escolas, as ondas, os “ismos”. Notar: Cervantes, Dostoievski, Balzac. Corpos-a-corpos com a vida e fundamentalmente. O resto foi arremedo. Ou, muita vez, nem isso.
João Antônio, Copacabana, 3 de novembro de 1975."
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